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A doença renal é caracterizada pelo comprometimento direto dos néfrons, unidades funcionais dos rins responsáveis pela filtração e formação da urina, ou como consequência de patologias do sistema urinário inferior não tratadas adequadamente com repercussão e comprometimento renal, podendo ser assintomática nos estágios iniciais. Entre os principais fatores de risco para essa doença estão hipertensão arterial e diabetes mellitus, além de histórico familiar ou pessoal de doença renal. Os rins são órgãos vitais não só por serem responsáveis pela formação da urina e excreção de catabólitos formados durante o metabolismo, mas também por possuir função endócrina e reguladora, mantendo a homeostase e o controle da osmolaridade plasmática e urinária. Por essa razão, qualquer comprometimento de sua funcionalidade deve ser identificado o mais rápido possível, a fim de se evitar complicações mais severas.
Na disfunção renal, os sintomas só começam a aparecer quando há perda de pelo menos 25% dos néfrons. Já a Doença Renal Crônica (DRC) é irreversível, sendo caracterizada por destruição progressiva do tecido renal. Pode ser dividida em 5 estágios de gravidade baseados no ritmo de filtração glomerular (RFG), sendo que o estágio 5 corresponde a falência renal, sendo necessária a realização de diálise ou transplante. Ao contrário da DRC, a Insuficiência Renal Aguda (IRA) é reversível e ocorre quando há perda de funcionalidade súbita dos rins, reduzindo consideravelmente o RFG.
Esse estado pode durar horas ou dias e, por essa razão, o paciente deve ser submetido à diálise até que a funciona-lidade renal retorne. Existem ainda diversas outras doenças renais, tais como nefrite, glomerulonefrite e síndrome nefrótica associadas com perda da função. Para se avaliar a função renal laboratorialmente, as dosagens séricas e urinárias de creatinina têm sido amplamente utilizadas como um parâmetro indicador de filtração glomerular.
A creatinina é um produto de interconversão da fosfocreatina, um composto de alta energia utilizado na contração muscular. Por esse motivo, a sua produção é proporcional à quantidade de massa muscular, sendo sintetizada nos rins, fígado e pâncreas e liberada nos fluidos corporais em uma taxa constante. Por ser livremente filtrada pelos rins, não ser reabsorvida e sofrer pequena secreção no túbulo distal, a creatinina é considerada o melhor marcador endógeno para função renal, já que permite avaliar o RFG. Apesar de suas concentrações plasmáticas e urinárias sofrerem interferência devido à essa pequena secreção, à massa muscular e ao nível de hidratação, essas interferências ainda são menores do que as sofridas por uréia e ácido úrico, outros dois compostos nitrogenados não proteicos, marcadores de filtração renal endógenos. Além dessa função, a concentração urinária da creatinina também é utilizada como índice para diluição urinária e como padrão interno para avaliação de outros biomarcadores renais como cistatina C, microalbumina e proteínas.
Diferentemente dos marcadores exógenos, as dosagens de creatinina são de baixo custo e de fácil execução laboratorial, além de fornecerem um ótimo parâmetro acerca do ritmo de filtração glomerular, o que é extremamente vantajoso para o laboratório de análises clínicas. No entanto, a dificuldade de coleta da urina de 24 horas pelo paciente, a baixa especifi-cidade de alguns métodos de dosagens e as interferências já citadas anteriormente, levam os pesquisadores a pensarem não apenas em novos marcadores, mas também sobre como aumentar a eficiência dos atuais métodos de dosagem.
A maioria dos laboratórios clínicos utiliza métodos baseados na Reação de Jaffé. Nesta reação, o picrato alcalino reage com a creatinina em meio básico, resultando em um complexo creatinina-picrato de cor alaranjada, o qual tem sua absorbância medida colorimetricamente. A reação de Jaffé, no entanto, não é especifica para a creatinina. Ácido ascórbico, corpos cetônicos, cefalosporinas, glicose, proteína, piruvato e guanidina produzem cromógenos semelhantes ao produzido pela creatinina, o que resulta em resultados falsamente elevados. Já a bilirrubina causa uma interferência negativa, levando a resultados diminuídos em relação à real concentração de creatinina. Para diminuir consideravel-mente essas interferências, deve-se inserir uma etapa a mais na execução do método por meio da adição de um acidificante. Após a execução da Reação de Jaffé com o ácido pícrico e a leitura da absorbância dos cromógenos resultantes (A1), o acidificante é adicionado e uma segunda leitura é realizada. Essa segunda leitura (A2) se refere apenas à absorbância dos cromógenos interferentes, pois, com a acidificação do meio, os complexos de creatinina-picrato são desfeitos. Desse modo, a concentração de creatinina será proporcional à diferença A1-A2 (Lei de Lambert Beer), e esse valor será o mais próximo da real concentração. É importante salientar que os compostos interferentes irão alterar de modo mais significativo os resultados obtidos de creatinina sérica, já que a quantidade de creatinina encontrada no sangue é muito menor do que aquela excretada na urina.
Os ensaios enzimáticos, ao contrário dos químicos, possuem alta especificidade e os reagentes utilizados na reação são compatíveis com os espectrofotômetros utilizados na maioria dos laboratórios. Porém, utilizam diversas enzimas de alto custo e que requerem um grande volume para o ensaio. Ensaios automatizados necessitam de volumes menores, contudo há perda de reagente durante o processo. Isso porque os sensores das máquinas automatizadas só conseguem utilizar o reagente até certo nível, restando cerca de 1-3 mL no cassete. Apesar disso, os ensaios enzimáticos já são comparados à espectrometria de massa, o “padrão ouro” em termos de especificidade.
Para se estimar o Clearance ou clareamento de Creatinina (ClCr), ou seja, a taxa de filtração glomerular utilizando a creatinina no modo convencional, é necessário que se esse composto seja dosado tanto no soro quanto na urina. Interpretar os resultados dessas duas dosagens separada-mente nem sempre é suficiente para se chegar ao diagnóstico de disfunção renal. A TFG obtida através da relação entre ambas, no entanto, permite ao médico suspeitar se está havendo comprometimento de funcionalidade renal através da diminuição dessa filtração. O cálculo demonstrado abaixo é utilizado para a obtenção do clearance e considera ainda a eficiência e velocidade de filtração do rim baseado na superfície corporal média da população e individual, o que permite adequar o resultado obtido aos valores de referência, sendo [U] a concentração urinária e [P] a concentração plasmática de creatinina.
A maior frequência de erros nos resultados obtidos devido à dificuldade de obtenção da urina 24h, no entanto, levou à formulação de novos métodos para que a TFG fosse estimada. Especificamente, duas fórmulas têm sido mais utilizadas na prática: a MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) e a CKD-EPI (Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration). Ambas são baseadas apenas nas concentrações séricas de creatinina, sendo que a primeira leva em consideração não apenas a superfície corporal, como também gênero e idade. Essas variáveis são importantes porque, como dito anterior-mente, a produção de creatinina é proporcional a massa muscular e, em termos biológicos, essa massa é maior em homens do que em mulheres. Além disso, é importante notar que o envelhecimento leva tanto a perda muscular como de néfrons, o que leva a redução da TFG. A equação CKD-EPI foi criada para maior precisão de resultados do que a MDRD, especialmente quando TFG é superior a 60 mL/min por 1,73 m2. Diversos estudos foram propostos para que se fosse possível avaliar a concordância de resultados entre essas duas fórmulas e a tradicional ClCr. A concordância encontrada na comparação entre MDRD e CKD-EPI, no entanto, é superior àquela obtida quando se compara cada uma dessas equações com a ClCr. ClCr não apenas superestima o resultado, como também é imprecisa devido à secreção tubular, massa muscular e erros pré-analíticos em amostras de urina 24 horas, além de exigir um tempo maior para execução do método.
CONCLUSÃO
Na contínua busca por um marcador renal ideal, novas vantagens e desvantagens serão descobertas sobre aqueles que são utilizados atualmente. Os marcadores exógenos considerados “padrão ouro”, apesar da eficácia, são caros, necessitam de administração e alguns podem ser tóxicos. A creatinina, por essa razão e pelas demais já citadas, continua a ser a melhor opção do ponto de vista da rotina do laboratório clínico. Considerando que o ClCr é um teste funcional da função renal, por informar a real Taxa de Filtração Glomerular do Individuo, quando é feita a coleta adequada da urina de 12 ou 24 horas, teremos a medida experimental da taxa de produção e eliminação da creatinina no organismo humano, lembrando que este o exame é indicado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia para o estadiamento das nefropatias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Talalak, K., J. Noiphung, T. Songjaroen, O. Chailapakul, W. Laiwattanapaisal. A facile low-cost enzymatic paper-based assay for determination of urine creatinina. Talanta 144, 2015, p.915–921